domingo, 21 de junho de 2009

PRAZER PELA METADE

Não há nada que me deixe mais
frustrada do que pedir sorvete de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar e aí ver o
garçom colocar na minha frente um bolinha
minúscula do meu sorvete preferido? Uma só.


Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa. Aí a vontade
que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um litro de sorvete bem cremoso e
saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser, sem pensar em calorias,
boas maneiras ou moderação.


O sorvete é só um exemplo do que
tem sido nosso cotodiano


A vida anda cheia de meias
porções, de prazeres meia-boca,
de aventuras pela metade. A gente
sai para jantar, mas come pouco.


Vai à festa de casamento,
mas resiste aos bombons.


Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulheres
continua com pavor de ser rotulada de "fácil").


Adora tomar um banho
demorado, mas se contém para não
desperdiçar os recursos do palneta.


Quer beijar aquele cara 20 anos
mais novo, mas tem medo
de fazer papel ridículo.


Tem vontade de ficar
em casa vendo um DVD, esparramada
no sofá, mas se obriga a ir malhar. E por aí vai.


Tantos deveres, tanta preocupação
em "acertar", tanto empenho em passar
na vida sem pegar recuperação...


Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente correta e existencialmente
sem-graça, enquanto a gente vai
ficando melancolicamente sem tesão...


Às vezes dá vontade de fazer
tudo "errado"? deixar de lado a régua,
o compasso, a bússola, a balança
e os 10 mandamentos.


Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e
pensam a nosso respeito. Recusar
prazeres incompletos e meias porções.


Até Santo Agostinho, que foi santo,
uma vez se rebelou e disse uma
frase mais ou menos assim:
"Deus, daí-me continência e castidade,
mas não agora"...


Nós, não aspiramos à santidade
e estamos aqui de passagem,
podemos (devemos?) desejar várias
bolas de sorvete, bombons de
vários sabores, vários beijos bem
dados, a água batendo sem pressa
no corpo, o coração saciado.


Um dia a gente cria juízo.
Um dia.
Não tem que ser agora.


Por isso, garçom, por favor,
me traga: duas bolas de sorvete de
chocolate, um sofá pra eu ver
10 episódios do "Law and Order",
uma caixa de trufas bem macias
e o Richard Gere, nu, embrulhado
pra presente. OK?
Não necessariamente nessa ordem.

Depois a gente vê como é que
faz pra consertar o estrago.


Autora:
Leila Ferreira - Jornalista que adora colecionar histórias das loucuras e das manias femininas.
É autora do livro Mulheres: Por que Será que Elas...?
da Editora Globo.